davies83_ Peter MacdiarmidGetty Images_bankofengland Peter Macdiarmid/Getty Images

A revolta dos reguladores

LONDRES - Quando presidi a Autoridade de Serviços Financeiros (Financial Services Authority - FSA) do Reino Unido, naqueles dias pré-diluvianos antes da crise financeira global de 2008, com frequência eu era questionado por financiadores que se ressentiam de nossas intrusões em suas vidas lucrativas: Quis Custodiet Ipsos Custodes? Quem vigia os vigias?

Na fonte latina original, Juvenal se referia a sentinelas corruptas que se aproveitavam de mulheres cuja moral deveriam proteger (um problema com o qual eu não estou familiarizado). Mas a questão é um bordão e um ponto de partida útil para discutir aqueles que se veem em desacordo com os seus reguladores. É o equivalente financeiro do grito frequentemente ouvido no recreio: “não é justo!”.

À época, não levei a acusação muito a sério. Longe de ser “juiz e júri de seu próprio tribunal”, acusação de então ao FSA, a autoridade do órgão era repleta de restrições. O estatuto sob o qual trabalhávamos foi rigorosamente elaborado, e o conselho era constituído em sua maioria por outsiders independentes, alguns do setor. Os painéis dos Profissionais e dos Consumidores tinham direitos de acesso,  decisões regulatórias podiam ser alvo de recurso nos tribunais – com potencial para revisão judicial –, e ambas as Casas do Parlamento com frequência me cobravam responsabilidade.

No período pós-2008, quando banqueiros eram chamados em massa para sentar no canto dos malcriados, a pergunta “quis custodiet” raramente era feita. Mas recentemente o tema ressurgiu em Londres de forma mais nítida. O governo conservador declarou sua intenção de legislar por um poder de intervenção de interesse público, o que permitiria aos ministros – apenas em circunstâncias excepcionais e com salvaguardas apropriadas, alegaram eles – “instruir um regulador para fazer, alterar ou revogar regras.”

O contexto é uma reforma do ambiente regulatório pós-Brexit do Reino Unido, concebido para tornar Londres um local ainda mais atraente para a realização de negócios financeiros. O exercício às vezes recebe o nome de Big Bang 2.0, um eco da reforma das práticas restritivas da primeira-ministra Margaret Thatcher na cidade de Londres em 1986, que deu início a um longo período de crescimento dos negócios financeiros, mal interrompido pela crise de 2008, que durou até o referendo do Brexit em 2016.

O objetivo declarado era recuperar o status da cidade como o principal centro financeiro internacional do mundo. Mas a subtrama era demonstrar os benefícios do Brexit, que o governo vem procurando explicar há algum tempo, exercício que lembra a busca francesa pela pimpinela escarlate no romance da Baronesa Orczy.

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A ideia de capacitar o governo para intervir nas decisões dos reguladores, muito diferente de definir seus objetivos e mantê-los responsáveis pelo cumprimento deles, dividiu bastante as opiniões. Como o governo usaria um poder assim? Poderia ser o início de uma corrida ao fundo do poço? Como se encaixaria nos acordos internacionais? O governo poderia então anular um novo Acordo de Basileia, por exemplo?

Vale notar que os próprios reguladores vieram a público em tom combativo. O vice-presidente do Banco da Inglaterra, responsável pela supervisão bancária, Sam Woods, contestou a premissa sobre a qual o caso foi construído. “Pode-se pensar que tal poder aumentaria a competitividade”, observou Woods. “Minha opinião é que, com o tempo, isso faria exatamente o oposto, minando nossa credibilidade internacional e criando um sistema em que a regulamentação financeira soprasse muito mais conforme o vento político – regulamentação mais fraca em alguns governos e mais dura em outros”.

Palavras fortes – e ecoadas pelo chefe do outro dos principais órgãos reguladores de Londres, a Autoridade de Conduta Financeira (Financial Conduct Authority). Richard Lloyd, presidente interino do órgão de fiscalização, disse aos parlamentares que a proposta causava “grande preocupação para nós.”

A opinião de Woods sobre a competitividade de Londres é baseada em inquéritos, realizados pela consultoria Z/Yen em particular, que tentam medir a atratividade de diferentes centros financeiros. Os entrevistados normalmente afirmam que, ao escolher sua localização, procuram segurança regulamentar, em vez de padrões baixos. Querem ter a certeza de que são tratados de forma justa, com um mínimo de interferência política e sem favorecimento às empresas nacionais, além de saber que suas contrapartes estão bem capitalizadas e bem reguladas. Isso faz sentido. Regulamentação fraca não é uma vantagem competitiva.

Nas empresas financeiras, a opinião sobre a proposta de novo poder foi mista. Alguns setores – em particular o de seguros, que considera que o BDI tem sido restritivo sem necessidade em sua interpretação das normas de solvência –  conseguiam ver vantagens potenciais. Mas outros notaram que um poder elaborado por um governo “desregulamentador” poderia facilmente ser usado na direção oposta por um ministro das finanças com uma pauta diferente. Se o poder fosse bem definido, de modo a manter os políticos a uma distância segura, isso faria pouco sentido. Se ele pudesse ser facilmente usado, também poderia ser facilmente abusado.

Há uma fração de argumento a favor do poder de intervir na regulamentação, caso a segurança nacional – em que os reguladores financeiros não têm as habilidades ou informações relevantes – esteja em discussão. Mas isso aponta para uma intervenção muito específica, e não um poder de “o freguês é quem manda” definido de modo amplo em relação a todas as regras do regulador.

Os reguladores internacionais assistiram ao debate em Londres com apreensão. Se o Reino Unido, visto há tempos como um bastião da Independência regulamentar e um importante centro financeiro global, mudasse numa direção política, outros regimes poderiam ser encorajados a adotar controles mais firmes sobre seus bancos centrais e reguladores. Isso poderia levar a uma fragmentação perigosa.

Com total oposição frontal ao plano por parte de seus próprios reguladores, o governo se viu num buraco. Com razão, no fim de novembro ele seguiu a primeira lei dos buracos e parou de cavar. Por enquanto, eles não vão prosseguir, e podemos entender que a ideia está morta até as próximas eleições. Os benefícios do Brexit devem ser encontrados noutros locais.

Cave quid volunt não é uma expressão latina tão conhecida como quis custodiet ipsos custodes e não tem fonte literária. Mas “cuidado com o que deseja” é muitas vezes um conselho muito bom, tanto para as empresas financeiras quanto para os governos.

Tradução por Fabrício Calado Moreira

https://prosyn.org/r6bB1dEpt