diallo1_AnthonyAsaelArtinAllofUsContributor_malariamosquitonetafrica Anthony Asael Artin/All of Us/Contributor/Getty Images

África não pode dar-se ao luxo de preferir a luta contra a COVID-19

GENEBRA – Com o número de casos confirmados de COVID-19 em África a ultrapassar os 500.000, o novo coronavírus está na primeira linha da consciência pública. Mas o continente já era assolado por doenças infecciosas muito antes do início da pandemia actual. E enquanto os governos e os doadores continuarem preocupados em controlar a COVID-19, assassinos como o VIH/SIDA, a malária e a tuberculose (TB) continuarão a ganhar força.

Dos 38 milhões de pessoas em todo o mundo que vivem com o VIH, o vírus que causa a SIDA, 25,6 milhões residem na África Subsaariana. África registou 380.000 óbitos por malária (94% do total global) em 2018. E todos os anos 2,6 milhões de pessoas desenvolvem TB, originando 630.000 óbitos.

Durante as duas últimas décadas foram conseguidos avanços consideráveis na luta contra estas doenças. As mortes relacionadas com a SIDA foram reduzidas para mais de metade desde 2004, em grande parte graças à disponibilidade da terapia anti-retroviral. A taxa de mortalidade da TB caiu 42% entre 2000 e 2017. E as mortes por malária diminuíram 60% entre 2000 e 2015: uma criança que contraia malária hoje tem mais hipóteses de sobrevivência que em qualquer época anterior.

Mas a crise da COVID-19 ameaça parar ou mesmo inverter esta evolução, nomeadamente através do grande afluxo a sistemas de saúde já fragilizados. Em Itália existe um médico para cada 243 residentes, mas mesmo assim, nalgumas regiões, o sistema de saúde soçobrou com o peso dos casos de COVID-19. Imagine-se o que faria um surto semelhante nos países africanos, que dispõem em média de um médico para cada 5.000 residentes.

É certo que o coronavírus se propagou mais lentamente em África que na Europa e na América do Norte. Mas a Organização Mundial da Saúde avisa que o surto poderá prolongar-se por alguns anos. Nesse caso, os desprovidos sistemas de saúde do continente sofrerão graves pressões durante muito tempo. E os recursos de que os governos disponham serão provavelmente canalizados para a COVID-19, mesmo se isso significar a sua reafectação em detrimento de outras doenças fatais.      

As perturbações nas cadeias de aprovisionamento causadas por medidas de contenção noutros locais agravam os riscos, ao dificultarem o acesso a recursos de saúde preventiva, a diagnósticos e a tratamentos necessários para combater o VIH, a TB e a malária. Alguns países africanos já interromperam programas que fornecem tratamentos e diagnósticos para a TB e o VIH, e suspenderam a distribuição de redes mosquiteiras tratadas com insecticida (RMTI), essenciais na protecção contra a malária, mesmo antes das elevadas taxas de transmissão da estação das chuvas.

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A OMS prevê que, no pior caso possível (suspensão de todas as campanhas de RMTI e redução de 75% no acesso a medicamentos antimaláricos eficazes), a crise da COVID-19 poderia originar este ano uma duplicação dos óbitos por malária na África Subsaariana. Níveis de mortalidade da malária desta grandeza foram registados pela última vez há 20 anos.

Além disso, uma perturbação de seis meses da terapia anti-retroviral poderia originar mais de 500.000 óbitos adicionais por doenças relacionadas com a SIDA (nomeadamente, a TB) na África Subsaariana em 2020/21. Em 2019, estima-se que tenham morrido na região 440.000 pessoas de doenças relacionadas com a SIDA.

Da mesma forma, um estudo liderado pela Parceria Stop TB demonstra que um confinamento de três meses e um período de recuperação de dez meses podem levar a um acréscimo global de 1,4 milhões de mortes por TB entre 2020 e 2025. Neste cenário, a luta global contra a TB sofreria um revés de entre 5 a 8 anos.

Estas consequências não são inevitáveis. O que é necessário é uma resposta colectiva global centrada na distribuição de serviços vitais, que reduza a carga sobre sistemas de saúde já sobrecarregados, e que proteja os mais desfavorecidos de África. O êxito dependerá de soluções inovadoras, de uma perspectiva holística (em lugar de programas desarticulados e orientados para patologias específicas) e de uma abordagem assente na equidade.

Para começar, os testes de diagnóstico (para a COVID-19 e para muitas outras enfermidades comuns) têm de estar acessíveis a todos, e especialmente às populações de alto risco. África dispõe de serviços consolidados para testagem de várias doenças comuns, nomeadamente na testagem de patologias múltiplas para o VIH e a TB. Mas estes programas encontram-se ameaçados, e África também está a perder terreno para as outras regiões na testagem da COVID-19.

Mas existem notícias prometedoras: alguns países implementaram a testagem conjunta para a TB e a COVID-19 e para a malária e a COVID-19 (e o tratamento imediato da malária, quando necessário). A testagem conjunta faz todo o sentido, porque o VIH, a TB e a malária causam sintomas consistentes com os da COVID-19, como a febre elevada. Estes programas têm de ser ampliados, para que os diagnósticos e tratamentos, frequentemente dispendiosos e de difícil acesso, estejam disponíveis para todos.

Isto é inteiramente exequível. Os países africanos, que têm muita experiência em emergências sanitárias, responderam de forma rápida e eficaz à ameaça da COVID-19. A União Africana, através dos Centros de Controlo e Prevenção de Doenças de África, proporciona a sólida liderança regional necessária à coordenação da resposta.

Estes esforços têm de ser ampliados e aprofundados, tanto para a contenção da COVID-19 como para a manutenção dos avanços na luta contra o VIH, a TB e a malária. A experiência do passado demonstra que o envolvimento das comunidades afectadas e a capacitação da sociedade civil serão vitais para o êxito.

O resto do mundo também tem de contribuir. Acima de tudo, isso significa aceitar que quaisquer vacinas ou tratamentos para a COVID-19 sejam disponibilizados gratuitamente a todos os países. Durante a epidemia do VIH, milhões de pessoas morreram desnecessariamente por não terem acesso a medicamentos vitais. Mesmo hoje, perto de nove milhões de pessoas na África Subsaariana aguardam tratamentos indispensáveis à sobrevivência. Todas as pessoas têm direito à saúde, independentemente do sítio onde vivam ou do dinheiro que tenham. Para a COVID-19, precisamos de uma Vacina do Povo.

Mas resgatarmos vidas à COVID-19 pouco significará se isso também implicar permitirmos o aumento do número de vidas perdidas para o VIH, a TB e a malária. Ao mesmo tempo que colaboramos para deter uma nova doença fatal, temos de comprometer-nos com a defesa dos avanços para a eliminação das doenças que já conhecemos.

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