kenewendo1Michael TeweldeXinhua via Getty Images_coffee farmer ethiopia Michael Tewelde/Xinhua via Getty Images

A chave para a revolução económica de África

GABORONE – No século IX, um pastor etíope chamado Kaldi reparou num facto estranho. Sempre que as suas cabras comiam as bagas de um arbusto específico, pareciam ficar cheias de energia. Com a sua curiosidade espicaçada, Kaldi levou algumas das bagas a um mosteiro, onde o abade as provou e, chocado pelo seu amargor, as atirou para uma fogueira. Para surpresa dos dois homens, porém, um aroma irresistível não tardou em se fazer sentir. Por isso, retiraram do fogo as bagas, agora torradas, mergulharam-nas em água, e tomaram o primeiro golo de sempre de café.

É adequado que aos países africanos caiba actualmente uma parte significativa de uma indústria global, que se tornou desde então uma parte integral das vidas de milhares de milhões de pessoas. Os Camarões, a Etiópia, a Côte d’Ivoire, o Quénia, a Tanzânia e o Uganda estão todos entre os 25 maiores produtores de café do mundo, e vários outros países (como Angola, Gana, Libéria, Burundi, Zâmbia, São Tomé e Príncipe, e Serra Leoa) estão a aumentar a sua quota de mercado. Infelizmente, não existem garantias de que os produtores de café africanos colham a parte devida dos benefícios decorrentes dos seus esforços.

Globalmente, as exportações de café valerão perto de 155 mil milhões de dólares em 2026, e o café é cada vez mais a bebida de eleição em África, graças ao rápido crescimento da classe média do continente. Mas a possibilidade de os produtores africanos (de café e de outras colheitas) tirarem partido destas oportunidades dependerá significativamente da trajectória da Zona de Comércio Livre Continental Africana (ZCLCA).

Quando estiver plenamente implementada, a ZCLCA será a maior zona de comércio livre do mundo, congregando 1300 milhões de consumidores de 54 países num mercado único para mercadorias e serviços. A Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento estima que a ZCLCA poderia impulsionar o comércio intra-africano (que é actualmente reduzido, com apenas 14,4% de todas as exportações africanas a permanecer no continente) em cerca de 33%, e reduzir o défice comercial entre o continente e o resto do mundo em 51%.

O problema é que poucos agricultores sabem o que é a ZCLCA, e menos ainda como esta os pode ajudar. Segundo um relatório da Africa No Filter, o reconhecimento da ZCLCA entre as micro, pequenas e médias empresas da Nigéria era de apenas 3% no sector agrícola em 2020. Na África Oriental (a região do continente onde se produz mais café) apenas 14% do sector empresarial privado tinha perfeita consciência do que era a ZCLCA. Podemos presumir de forma segura que a maioria dos produtores africanos de café (dos quais, cerca de 80% são pequenos proprietários) não sabem que o Secretariado da ZCLCA assinou recentemente um memorando de entendimento com a Organização Interafricana do Café para apoiar o desenvolvimento da cadeia de valor do café no continente.

Em parte, isto é um problema de cobertura pela comunicação social. Como salienta o relatório da Africa No Filter, a ZCLCA aparece em menos de 1% das notícias empresariais sobre o continente. No ano passado, quando o Secretariado da ZCLCA e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento publicaram um Relatório sobre Futuros que identificava as cadeias de valor onde se deveria concentrar o investimento (desde o sector automóvel, ao cacau e às baterias de iões de lítio), a comunicação social praticamente não o noticiou.

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Se uma grande parte dos consumidores, empreendedores e empresas não conseguirem acompanhar os desenvolvimentos relacionados com a ZCLCA nem participar nos debates sobre como a mesma se deveria desenvolver, o acordo começará a parecer-se com mais uma iniciativa que só ajudará uns poucos privilegiados. Isto poderia acabar por se tornar uma profecia auto-cumprida, já que a insuficiência de informações e de sensibilização impede que a maioria tire partido das oportunidades assim criadas.

Dada a importância crítica da ZCLCA para o futuro económico de África, essa seria uma perda importante. Para evitar este resultado, os governos, com a ajuda dos meios de comunicação, têm de voltar a duas das suas funções mais essenciais: informar e envolver.

Para cumprir o primeiro imperativo, os governos devem colaborar com o Secretariado da ZCLCA e com outros parceiros, para reavivar os “seminários para sensibilização” introduzidos no início da pandemia da COVID-19. O objectivo tem de consistir em chegar a todas as partes interessadas, especialmente às pequenas e médias empresas, com informações detalhadas sobre a ZCLCA, usando uma linguagem comum e acessível para explicar as formas como se vai simplificar o comércio transfronteiriço. O Secretariado também deverá garantir que todas as informações relevantes estão disponíveis em plataformas on-line acessíveis.

O objectivo não é distribuir factos abstractos. As pessoas tendem a envolver-se nos assuntos somente quando as suas subsistências são afectadas, e por isso é vital demonstrar exactamente o que significa, na prática, a ZCLCA para as empresas e os consumidores. Por exemplo, um produtor de café em Harar, na Etiópia, terá de compreender ao mesmo tempo que dispõe de um mercado potencial no Botswana, com a sua cultura de café em desenvolvimento e grande classe média, e o modo como a ZCLCA pode ajudá-lo a aceder a esse mercado.

As alterações climáticas representam riscos sérios para a ZCLCA, porque a dependência da maioria das economias africanas relativamente aos minerais, à agricultura e à vida selvagem deixa-as vulneráveis a eventos meteorológicos extremos. Segundo a ONU, se o aquecimento global atingir 1 a 4° Celsius, prevê-se que o PIB global do cliente diminua 2,25 a 12,12%, com a África Ocidental, Central e Oriental a serem mais afectadas por esta descida.

Por conseguinte, é imperativo que o comércio seja usado como alavanca para o crescimento sustentável. A implementação da ZCLCA também tem de estar alinhada com a Agenda 2063, o quadro estratégico da União Africana, que visa o crescimento inclusivo e o desenvolvimento sustentável do continente e salienta a importância de construir “economias e comunidades sustentáveis do ponto de vista ambiental e resilientes face ao clima”.

Para garantir que o impacto do acordo seja o mais forte possível, os governos deveriam implementar medidas e estratégias de âmbito nacional para complemento da ZCLCA. Ao mesmo tempo, as instituições da UA deveriam colaborar com organizações como o Banco Africano de Desenvolvimento, o Banco Africano de Importações e Exportações e a Nova Parceria para o Desenvolvimento de África, para melhorarem a coordenação de projectos transfronteiriços que afectem o comércio intra-africano, como é o caso dos investimentos em infra-estruturas. A própria UA deveria ser reformada, de acordo com as recomendações apresentadas em 2017 pelo presidente ruandês Paul Kagame.

Mais fundamentalmente, os governos, sociedades e instituições africanas têm de adoptar o princípio de que todos os africanos partilham uma história comum e um destino comum. Isto ajudará bastante para acelerar a implementação da ZCLCA e para maximizar os seus benefícios.

O secretário-geral do Secretariado da ZCLCA, Wamkele Mene, deixou bem claro que, graças a este acordo, África fica “aberta aos negócios”. Isso é verdade, mas significará pouco a menos que as pessoas que as pessoas que gerem esses negócios, dos pequenos agricultores aos empreendedores inovadores, e da Cidade do Cabo ao Cairo, estejam conscientes dele e recolham os devidos benefícios.

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