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A revolução da IA na ciência climática

LONDRES – Acabámos de testemunhar o início de uma mudança de paradigma nas ciências da terra. Um artigo publicado na Nature em Julho demonstrou que uma rede neuronal (inteligência artificial) conseguiu prever melhor o tempo do que o Centro Europeu para Previsões Meteorológicas de Médio Prazo, que dispõe do sistema de previsão mais avançado do mundo. Depois, em Novembro, a DeepMind da Google anunciou que a sua IA de previsão meteorológica produzira previsões ainda mais acertadas.

A abordagem tradicional às previsões meteorológicas consiste em usar observações registadas em momentos específicos como condições iniciais para equações baseadas em princípios físicos. Em contrapartida, uma IA ingere dados recolhidos durante longos períodos de tempo e depois “aprende” as dinâmicas que as equações tradicionais têm de descrever de forma explícita. Tanto o método tradicional como o baseado na IA dependem de supercomputadores, mas a IA não necessita de teorias formalmente desenvolvidas.

As previsões meteorológicas determinam quando e onde os aviões podem voar, as rotas que os navios podem percorrer, e ajudam a gerir todo o tipo de riscos civis e militares associados a um ambiente variável. São importantes. Apesar de ainda nos encontrarmos nos dias iniciais das aplicações da IA neste campo, e de ainda ser necessário afinar muitos detalhes, tal como noutros sectores, as previsões baseadas na IA podem substituir trabalho especializado, já que as redes neuronais não necessitam de conhecer a meteorologia dinâmica (os autores do artigo da Nature são engenheiros sem experiência neste campo). Mas as implicações não acabam aí.

Ao escrever sobre o problema das previsões estatísticas na década de 1950, Norbert Wiener, o pai da cibernética, salientou que, se já conhecemos a história de um sistema que exibe determinadas propriedades, a inclusão do conhecimento das equações que governam as suas dinâmicas não melhorará necessariamente as nossas previsões. Wiener defendia um argumento principalmente teórico porque, à época, as limitações nas observações, nos dados, na capacidade de computação e noutros factores não permitiam outra perspectiva. Mas hoje o seu argumento vai ao cerne da questão, ao capturar as implicações mais genéricas dos recentes avanços da IA.

Só nos últimos anos, aumentámos imensamente os nossos dados observacionais da Terra. Entre 1993 e 2003, foram lançados no espaço apenas 25 satélites para observação da Terra; mas entre 2014 e 2022, este número disparou para 997, fazendo o número total de satélites em órbita para observação da Terra e outras funções chegar perto dos 7.560. Com uma enorme infra-estrutura espacial que transmite dados sobre quase tudo – desde o crescimento das plantas, o vapor de água e instalações de infra-estruturas, até à radiação infravermelha, à cobertura vegetal e às medições do estado da atmosfera – entrámos numa época áurea para a observação da Terra.

Este arquivo crescente de dados descreve quase tudo o que é feito na Terra, quer por nós, quer pela natureza. Quando combinado com novos modelos de IA e com a nossa infra-estrutura computacional em contínuo crescimento, poderá alterar significativamente a nossa compreensão do planeta e da nossa função no mesmo.

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Consideremos as alterações climáticas. Durante os últimos 40 anos, a resposta da humanidade à crise climática tem sido guiada pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, um organismo científico que se encontra compartimentado por disciplinas: as ciências físicas usam grandes modelos sistémicos da Terra que têm muito em comum com os modelos usados na previsão meteorológica, enquanto, de forma separada, os economistas e os geógrafos quantificam o impacto e se concentram no papel das políticas de adaptação e mitigação nas nossas sociedades.

Esta divisão do trabalho, reflectida nos grupos de trabalho tripartidos do PIAC, corresponde a uma divisão nas metodologias. Enquanto os modelos sistémicos da Terra baseados na física derivam de equações fundamentais, os economistas e os modeladores de impactos usam um portefólio de métodos empíricos e de teorias irredutíveis.

A IA poderá alterar tudo isto. Apesar de ser improvável que venha a suplantar completamente a modelação climática tradicional – o nosso registo de observações não é suficientemente extenso para proporcionar uma imagem estatisticamente abundante dos fenómenos climáticos ao longo dos séculos – já está a desempenhar um papel importante neste campo.

Mais precisamente, o que é mais importante para nós não é o modo como o sistema climático se comporta, mas sim como afecta o mundo onde vivemos nós e outras criaturas. Os modelos de IA – agnósticos relativamente a quaisquer teorias científicas actuais ou paradigmas epistemológicos – poderiam ajudar-nos a inferir, e possivelmente prever, a forma como a biomassa muda na paisagem ao longo do tempo. Isso, por sua vez, poderia melhorar a forma como gerimos as florestas e a agricultura, construímos ferramentas de diagnóstico e sistemas de alerta precoce para incêndios ou para o risco de cheias, compreendemos a forma como a economia da energia se liga a estas alterações, ou prevemos os seus efeitos sobre a economia em sentido lato e mesmo sobre as negociações climáticas. E tudo isto complementaria a forma como a IA pode acelerar a transição para uma economia com baixo teor de carbono.

Evidentemente, a IA não substitui o entendimento científico. A ciência continuará a ser uma busca humana quintessencial, cujo valor reside mais em fazer as perguntas certas do que em extrair uma resposta dos dados. Não obstante, deveríamos aproveitar ao máximo a mudança epistemológica anunciada pela ascensão da IA. Esta pode ajudar-nos a identificar novos fenómenos observáveis que até agora têm escapado às lentes disciplinares. Pode apoiar-nos a gerir sistemas à escala da paisagem que são demasiado complexos para serem susceptíveis à teorização. É o instrumento exploratório definitivo para derrubar os limites entre as disciplinas.

Esta transição também implica um profundo desafio político. A infra-estrutura em que assenta – satélites de observação da Terra e capacidade de computação – é cada vez mais controlada pelo sector privado. O maior proprietáriode satélites de observação da Terra é uma empresa chamada Planet Labs. As empresas de alta tecnologia – da IBM e Nvidia à DeepMind e Huawei (cujos funcionários redigiram o artigo de Julho na Nature) – estão na linha da frente da aprendizagem automática. Com acesso a capital e recursos sem igual, estas empresas podem facilmente ultrapassar a maior parte dos centros de investigação públicos. Algumas podem ser bastante filantrópicas, mas em última análise não têm qualquer obrigação de fornecer bens públicos ou de se preocuparem com a equidade no acesso à sua infra-estrutura.

À medida que lidamos com as implicações da revolução digital e com um ambiente natural que muda perante os nossos olhos, a IA poderá deter a chave para descodificar alguma da complexidade que já excede a nossa compreensão. Mas com os meios de investigação firmemente em mãos privadas, os decisores políticos terão de ser vigilantes para garantir que estas novas ferramentas fornecem bens públicos, além de apenas benefícios privados, e que as perguntas que são feitas produzem respostas que informam os objectivos políticos legítimos dos países.

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