haldar37_MUNIR UZ ZAMANAFP via Getty Images_yunus MUNIR UZ ZAMAN/AFP via Getty Images

O que as microfinanças podem ensinar aos economistas

CAMBRIDGE - “A economia é um assunto sem sentido”, disse Muhammad Yunus, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, pioneiro das microfinanças e economista desonesto, à revista Timehá alguns meses. Ele não imaginava que logo teria a oportunidade de demonstrar o que queria dizer. Após a destituição do primeiro-ministro autoritário de Bangladesh, Sheikh Hasina, no início deste mês, Yunus foi escolhido para liderar o governo interino do país.

Fundada em 1971, após uma sangrenta guerra de independência, Bangladesh é um improvável candidato a garoto-propaganda do desenvolvimento, devido à explosão de sua população e à grande vulnerabilidade a desastres naturais. No entanto, na década de 1990, Bangladesh tinha uma reivindicação confiável para esse título. Enquanto muitos outros países em desenvolvimento eram sufocados pelo neoliberal Consenso de Washington, figuras de Bangladesh, como Yunus (com seu Grameen Bank) e Fazle Hasan Abed (fundador da organização sem fins lucrativos BRAC, de combate à pobreza), estavam aproveitando uma terceira ferramenta além do Estado e do mercado: a sociedade civil.

Trabalhando como um jovem pesquisador do desenvolvimento em Bangladesh no início dos anos 2000, testemunhei em primeira mão o trabalho inicial dessas ONGs pioneiras. Elas buscavam soluções não no quadro negro, mas no campo, criando uma placa de Petri global para inovações em desenvolvimento. Como disse um de meus entrevistados, Bangladesh era “a Wall Street do desenvolvimento”.

No entanto, assim como a verdadeira Wall Street, o modelo de Bangladesh teve problemas há cerca de 15 anos, quando Hasina voltou ao poder (ela já havia sido primeira-ministra de 1996 a 2001). Líder da secular Liga Awami e filha do “pai fundador” de Bangladesh, Mujibur Rahman, Hasina foi vista inicialmente como um símbolo da democracia. No entanto, seu mandato deu uma guinada alarmante em direção ao autoritarismo e à corrupção desenfreada, e as coisas finalmente chegaram ao limite neste verão, quando ela tentou ordenar uma repressão violenta contra manifestantes estudantis pacíficos.

A agitação deste ano foi uma reação não só à política repressiva de Hasina, mas também às suas  políticas econômicas. Sem dúvida, o crescimento acelerado do PIB e as melhorias na infraestrutura deram a Bangladesh a reputação de “milagre” econômico. Contudo, Hasina havia reprimido as organizações da sociedade civil que puseram Bangladesh no mapa do desenvolvimento em primeiro lugar. Ela tinha um desprezo especial por Yunus, a quem chamava de “sanguessuga”. Depois de expulsá-lo de seu cargo de diretor do Grameen Bank em 2011, seu governo buscou várias acusações legais forjadas contra ele.

A estratégia econômica da própria Hasina foi tirar uma página do manual convencional de economia do desenvolvimento. Para aproveitar o crescimento impulsionado pelas exportações, ela posicionou Bangladesh como um centro de fabricação de roupas de baixo custo. Com salários incrivelmente baixos e regulamentação mínima, o país se tornou a fábrica de roupas de fast-fashion do mundo.

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Uma consequência dessa estratégia foi a existência de pouquíssimas oportunidades de emprego para graduados universitários fora dos cargos no setor público, que são alocados por meio de um sistema de cotas corrupto e nepotista. Foi esse sistema - juntamente com a alta inflação e outros efeitos persistentes da pandemia - que desencadeou os protestos de verão.

Agora que a juventude revolucionária proporcionou a Yunus um grau de influência sem precedentes no cenário nacional e internacional, as credenciais de desenvolvimento de Bangladesh enfrentam um grande teste. O “modelo de Bangladesh”, centrado na sociedade civil, sempre foi apenas uma aberração peculiar da economia neoclássica e suas receitas de políticas, ou representa um desafio genuíno?

Como já documentei em outros artigos, o grande avanço inovador das microfinanças foi a concessão de empréstimos sem os tipos de garantias econômicas ou jurídicas (como garantias reais e contratos vinculantes) que a economia convencional insiste que são necessárias. Ao contrário do que a perspectiva dos livros didáticos poderia prever, as instituições de microfinanças (IMFs) do mundo todo registram taxas de reembolso muito acima de 90%.

Embora Yunus tenha sido amplamente reconhecido por seu papel na introdução de uma das mais importantes intervenções de desenvolvimento das últimas décadas, há muito tempo suspeito que o insight psicológico no centro do modelo de microfinanças pode reformular nosso pensamento de modo mais ampla.

Em vez de presumir que os tomadores de empréstimos (em sua maioria mulheres pobres dos vilarejos de Bangladesh) eram “atores racionais” que maximizavam a utilidade e para os quais o pagamento seria irracional na ausência de coerção, as IMFs se arriscaram. E em vez de visar indivíduos, as IMFs emprestaram a grupos de cinco ou mais mulheres. Como os indivíduos quase sempre estão inseridos em grupos, a lógica dessa abordagem é óbvia. No entanto, a dinâmica intragrupo permanece notoriamente sub-teorizada na economia (onde as famílias e as empresas são os principais agentes de tomada de decisão e unidades de análise).

Ao adotar essa abordagem, as IMFs criam coesão social dentro dos grupos de beneficiários, que geralmente realizam reuniões regulares e rituais públicos de pagamento, provocando assim um comportamento pró-social de todos os participantes. Como observei no trabalho que compara a SKS Microfinance da Índia com o histórico do Grameen Bank, são esses mecanismos de reforço social, e não os incentivos econômicos, que sustentam o sucesso do modelo.

Outro insight valioso das microfinanças é que é importante acertar no tamanho do grupo, o que, nesse caso, geralmente significa manter os grupos pequenos. Embora teóricos como Leopold Kohr e E.F. Schumacher tenham feito essa observação no passado, os economistas tradicionais continuam obcecados por economias de escala (maior é sempre melhor).

Tendo sido replicado em mais de cem países, o modelo de microfinanças de Bangladesh se distingue por ter sido incubado no Sul Global, e não importado para lá. Essa origem o torna bem adaptado ao contexto cultural em que opera. Por exemplo, como os tomadores de empréstimos em economias fortemente rurais e baseadas na agricultura em geral têm dificuldade de acessar serviços bancários, os banqueiros de microfinanças reconheceram a necessidade de ir até os vilarejos.

A economia dominante tem, em grande parte, descartado os insights das microfinanças como anedotas folclóricas e bem-humoradas. Mas em um novo projeto, em colaboração com uma equipe de cientistas, eu exploro o significado potencialmente profundo das “preferências sociais” nos arranjos econômicos.

Uma instituição projetada para envolver o sistema “instintivo” dos indivíduos, em vez do sistema “deliberativo”, poderia provocar um comportamento sistematicamente diferente? E se começarmos com a suposição de um agente econômico pró-social, em vez de um agente egoísta e atomístico? E se reconfigurarmos nossas redes para torná-las mais cooperativas? Talvez pudéssemos evitar a profecia econômica autorrealizável de uma tragédia dos comuns. Se pararmos de “excluir” nossa bondade intrínseca, talvez possamos construir o que Samuel Bowles chama de “economia moral”.

Espera-se que Yunus possa ajudar a afastar Bangladesh da condição de fábrica de semiescravos do mundo e voltar a servir como laboratório mundial de desenvolvimento humano e progresso social. Num momento em que muitos debatem o que vem depois do neoliberalismo, o “banqueiro dos pobres” pode ajudar a imbuir a economia com a experiência do mundo real e o espírito de inovação de que tanto precisa.

Tradução por Fabrício Calado Moreira

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