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A mortífera crise habitacional da África do Sul

JOANESBURGO – No fim de Agosto, um incêndio devastador num edifício de apartamentos degradado em Joanesburgo ceifou as vidas de 77 pessoas. O incêndio, um dos mais mortíferos na história da África do Sul, veio recordar de forma dramática as condições de vida precárias enfrentadas pelos residentes mais vulneráveis da cidade e evidenciou a crise habitacional urbana do país.

Construído na década de 1950, o edifício de cinco andares do número 80 da Albert Street servira originalmente como um “gabinete de passagem”, um ponto de verificação para regular o movimento das pessoas Negras durante o apartheid. Foi posteriormente convertido em abrigo para mulheres e crianças vítimas de abuso, antes de as autoridades municipais terem acabado por abandoná-lo. Posteriormente, transformou-se em alojamento temporário para albergar migrantes e pessoas em situação de pobreza. Os seus ocupantes enfrentavam condições de vida precárias e rusgas policiais frequentes, e não dispunham de acesso a serviços básicos, um dilema comum entre os residentes mais desfavorecidos da cidade.

Infelizmente, esta não foi a primeira vez em que morreram pessoas em Joanesburgo devido a condições habitacionais inadequadas. Em 2017, um incêndio num edifício da baixa da Cidade do Cabo custou a vida a sete pessoas. No ano seguinte, três crianças morreram no subúrbio urbano de Doornfontein, quando uma parede se desmoronou sobre elas. E em 2021, um incêndio perto da zona empresarial central provocou nove mortes.

Na resposta ao incêndio do número 80 da Albert Street, os responsáveis minimizaram a crise habitacional generalizada em Joanesburgo. Em vez de abordarem os problemas subjacentes, como a pobreza e a negligência regulamentar, tentaram empurrar as culpas para os “imigrantes ilegais” e para as ONG que se opõem aos despejos (sem as quais a crise seria muito mais grave). Esta resposta exemplifica a incapacidade de longa data das autoridades municipais na protecção dos habitantes mais desfavorecidos e vulneráveis da cidade, e que torna as tragédias inevitáveis.

A grave crise habitacional da África do Sul pode ser em parte atribuída à urbanização rápida. Em 2022, mais de 65% da população do país residia em áreas urbanas. A população de Joanesburgo, a cidade com maior densidade populacional na África do Sul, cresce quase 30% desde 2011. Num cenário de carência de 3,7 milhões de casas, os agregados de baixos rendimentos – que constituem a maioria da população – debatem-se para encontrar alojamento decente e seguro nos centros urbanos do país.

Ninguém reside voluntariamente num edifício perigoso; essa é uma medida desesperada, tomada por pessoas com pouco ou nenhum rendimento e sem outras opções viáveis. Segundo o último Relatório sobre o Estado das Cidades Sul-Africanas, relativo a 2016, quase metade dos residentes de Joanesburgo viviam com menos de 2000 rands (105 dólares) por mês. Com o agravamento da escassez de casas e a subida dos custos, muitas mais pessoas foram forçadas a ocupar estruturas temporárias e perigosas.

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Para atenuar a crise da habitação, Joanesburgo adoptou uma política habitacional inclusiva em 2019. Entre outras coisas, a política visa “criar uma mistura de grupos de rendimento nos projectos privados de habitação”, exigindo aos promotores imobiliários que atribuam pelo menos 30% de todos os novos projectos residenciais com 20 ou mais unidades a habitação acessível. Por exemplo, o governo atribui subsídios a novos proprietários que ganhem entre 3501 e 22000 rands por mês, além de subsídios ao arrendamento, que estão limitados a 2100 rands por mês. Mas a procura mais expressiva pelo arrendamento é gerada pelos agregados de baixos rendimentos que ganham menos de 3200 rands por mês.

Apesar de esta política representar um desenvolvimento a saudar, a disparidade entre os rendimentos e os custos da habitação veio abalar o seu potencial. O Plano de Desenvolvimento Espacial para 2040 da cidade define a habitação acessível como um alojamento cujos custos totais – incluindo impostos, serviços de utilidade pública e seguros (nos casos em que a propriedade não seja arrendada) – não excedam 30% do rendimento bruto do agregado. Portanto, de acordo com as próprias normas da cidade, a política fica aquém dos seus objectivos.

Um outro factor que empurra os residentes para a habitação de qualidade inferior é a falta de acesso a oportunidades económicas. Um estudo de 2016 sobre “desfasamento espacial” em cidades sul-africanas sublinhou o impacto persistente de políticas da era do apartheid que perpetuam a segregação racial e de classe, forçando os trabalhadores Negros a viver em áreas periféricas e com serviços inadequados. Um relatório de 2020 realizado pela província de Gauteng, que inclui Joanesburgo, concluiu que 60% dos agregados gastam mais de 10% do seu rendimento disponível em transportes públicos, uma subida quando comparados com 55% dos agregados em 2014.

Mas o legado do apartheid não é o único obstáculo à justiça espacial. Em vez de garantirem alojamento para os residentes de baixos rendimentos, os responsáveis de Joanesburgo facilitaram a privatização do planeamento urbano ao aprovarem a construção de bairros fechados para os ricos, como é o caso de Steyn City. Como observa a socióloga Federica Duca, estes projectos impedem a integração e a acessibilidade, ao criarem “locais de reprodução social da separação espacial e social”. Desde a década de 1990, o número de comunidades fechadas em Gauteng – e especialmente em Joanesburgo – aumentou acentuadamente, transformando efectivamente áreas públicas em espaços semiprivados.

Isto tem de mudar. Joanesburgo tem de fornecer aos residentes de baixos rendimentos uma habitação segura e acessível que lhes permita aceder a oportunidades económicas e a comodidades essenciais. Toda a habitação permanente e provisória tem de ser urgentemente melhorada, para garantir que os ocupantes possam receber serviços básicos. As autoridades municipais têm de endurecer a sua postura perante os proprietários negligentes, nomeadamente com a expropriação de edifícios abandonados ou com manutenção deficiente e com a sua conversão em habitação pública para arrendamento especificamente destinada aos agregados de baixos rendimentos.

Principalmente, os decisores políticos têm de mudar a sua atitude perante as comunidades desfavorecidas da cidade. Enquanto as autoridades municipais continuarem a negligenciar os residentes de baixos rendimentos, as tragédias como o incêndio no número 80 da Albert Street continuarão a acontecer.

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