EUGENE/BRASÍLIA/HEIDELBERG – Quando o ex-presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, chegou ao poder em janeiro de 2019, um dos seus primeiros atos no exercício das suas funções foi abolir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), um organismo mundialmente aclamado que tinha reduzido significativamente a insegurança alimentar. Foi um enorme retrocesso para o país, uma vez que a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, sigla em inglês) já tinha retirado o Brasil do seu “mapa da fome” em 2014.
As pessoas mobilizaram-se imediatamente para protestar contra a decisão de Bolsonaro, inclusive organizando refeições públicas impressionantes nas ruas de muitas cidades – um banquetaço nacional. Reunidos à volta de mesas repletas de alimentos saudáveis, a resistência das comunidades celebrou e reivindicou simultaneamente o direito a uma alimentação e nutrição adequadas.
Este espírito de resistência – se fosse reproduzido noutros lugares – poderia transformar os sistemas alimentares em todo o mundo e aliviar a crise mundial da fome que a pandemia, os choques climáticos e os conflitos exacerbaram. Na qualidade de Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação, outro dos autores deste artigo (Fakhri) atribuiu o aumento dos índices de fome à “violência sistémica e à desigualdade estrutural nos sistemas alimentares”, que são “uma caraterística central de uma economia global que é apoiada por relações de dependência entre indivíduos, países, instituições financeiras internacionais e empresas”.
Estima-se que 258 milhões de pessoas enfrentaram insegurança alimentar aguda em 2022, o maior número registado desde que o Relatório Global sobre Crises Alimentares (GRFC, na sigla em inglês) começou a comunicar dados em 2017. Na sua apresentação do relatório GRFC deste ano, o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que a crise atual exigia “mudanças fundamentais e sistémicas”.
Uma abordagem baseada nos princípios dos direitos humanos é indispensável para realizar essa mudança. No Brasil, o escandaloso aumento da insegurança alimentar durante a presidência de Bolsonaro foi a consequência de políticas que negligenciaram as pessoas marginalizadas e violaram os seus direitos. Como resultado, o CONSEA, recentemente restabelecido, está a defender políticas que combatem a fome e abordam as suas causas profundas, tais como o racismo estrutural e as desigualdades de género. Não podemos continuar a apoiar sistemas alimentares insustentáveis que concentram o poder e a riqueza nas mãos de meia dúzia de privilegiados.
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As Diretrizes das Nações Unidas sobre o Direito à Alimentação, adotadas pela FAO em 2004, descrevem como abordar as causas estruturais da discriminação e da desigualdade nos sistemas alimentares. Estas orientações foram pioneiras na implementação dos direitos humanos económicos, sociais e culturais e inspiraram inúmeras políticas nacionais e reformas jurídicas. Também desencadearam o desenvolvimento de um conjunto completo de normas e políticas baseadas em direitos humanos adotadas pelo Comité de Segurança Alimentar Mundial (CFS, sigla em inglês) da ONU, pela Assembleia Geral da ONU e por outras agências da ONU, inclusive para mulheres, camponeses, povos indígenas, pescadores e outros grupos.
No Brasil, os esforços nacionais e internacionais traduziram esses princípios num pacote de políticas e programas nacionais destinados a vencer a discriminação racial e de género, garantindo rendimentos decentes e proteção social, e garantindo os direitos à terra e à água de mulheres, camponeses, povos indígenas, pastores e pescadores. Esses esforços também resultaram em iniciativas de agroecologia e soberania alimentar que envolvem ativamente grupos da sociedade civil e cidadãos comuns, bem como programas de refeições escolares provenientes de agricultura familiar.
Mas o Brasil está longe de ser um caso isolado: outros governos estão a adotar reformas semelhantes. Conselhos locais, regionais e nacionais de política alimentar estão a ser criados em todo o mundo e alianças parlamentares estão a trabalhar para aprovar legislação sobre o direito à alimentação em muitos países.
A intensificação destes esforços exigirá uma coordenação política significativamente maior entre todos os níveis de governo. O Conselho de Direitos Humanos da ONU e o CFS salientaram a necessidade de uma resposta coordenada à atual crise alimentar. Mas, ao mesmo tempo, a sociedade civil, povos indígenas e académicos alertaram contra o aprisionamento da governação alimentar por parte das empresas e apelaram por um quadro de responsabilização empresarial a nível das Nações Unidas.
Existe uma dinâmica crescente de mudança antes do 75.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que será comemorado em dezembro. E o direito a uma alimentação e nutrição adequadas, em particular, poderá estar no topo da agenda. No final de junho, o governo alemão irá acolher a conferência “Políticas contra a Fome”; a edição deste ano centrar-se-á em abordagens baseadas nos direitos para a transformação dos sistemas alimentares. Com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos a propor uma economia dos direitos humanos e com o Brasil a preparar-se para assumir a presidência rotativa do G20 em 2024, poderemos assistir a propostas ambiciosas para fazer avançar o direito à alimentação a nível internacional.
A profunda desigualdade, a discriminação estrutural e a violência sistémica dos sistemas alimentares persistem há demasiado tempo e os cidadãos comuns de todo o mundo exigem mudanças. Uma transformação a esta escala exige uma estreita colaboração entre a mistura diversificada de pessoas que se estão a envolver em formas criativas de resistência, bem como governos progressistas que estejam dispostos a ouvi-las e a representar os seus interesses. O respeito pelos direitos humanos tem de constituir a base de qualquer esforço para reduzir a fome aguda. É a única maneira de criar um sistema sustentável e equitativo que forneça uma alimentação adequada para todos.
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At the end of a year of domestic and international upheaval, Project Syndicate commentators share their favorite books from the past 12 months. Covering a wide array of genres and disciplines, this year’s picks provide fresh perspectives on the defining challenges of our time and how to confront them.
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EUGENE/BRASÍLIA/HEIDELBERG – Quando o ex-presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, chegou ao poder em janeiro de 2019, um dos seus primeiros atos no exercício das suas funções foi abolir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), um organismo mundialmente aclamado que tinha reduzido significativamente a insegurança alimentar. Foi um enorme retrocesso para o país, uma vez que a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, sigla em inglês) já tinha retirado o Brasil do seu “mapa da fome” em 2014.
As pessoas mobilizaram-se imediatamente para protestar contra a decisão de Bolsonaro, inclusive organizando refeições públicas impressionantes nas ruas de muitas cidades – um banquetaço nacional. Reunidos à volta de mesas repletas de alimentos saudáveis, a resistência das comunidades celebrou e reivindicou simultaneamente o direito a uma alimentação e nutrição adequadas.
Muitos também reforçaram o seu compromisso político, apelando a um processo de mobilização permanente ao longo dos quatro anos de governo de Bolsonaro através da Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, que se reúne de quatro em quatro anos para monitorizar políticas e desenvolver propostas com base numa análise aprofundada a nível local e nacional. Logo após a tomada de posse de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente do Brasil, em janeiro, ele reativou o CONSEA, presidido por uma das autoras deste artigo (Recine) e que se reunirá ainda este ano com a conferência popular para ouvir propostas.
Este espírito de resistência – se fosse reproduzido noutros lugares – poderia transformar os sistemas alimentares em todo o mundo e aliviar a crise mundial da fome que a pandemia, os choques climáticos e os conflitos exacerbaram. Na qualidade de Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação, outro dos autores deste artigo (Fakhri) atribuiu o aumento dos índices de fome à “violência sistémica e à desigualdade estrutural nos sistemas alimentares”, que são “uma caraterística central de uma economia global que é apoiada por relações de dependência entre indivíduos, países, instituições financeiras internacionais e empresas”.
Estima-se que 258 milhões de pessoas enfrentaram insegurança alimentar aguda em 2022, o maior número registado desde que o Relatório Global sobre Crises Alimentares (GRFC, na sigla em inglês) começou a comunicar dados em 2017. Na sua apresentação do relatório GRFC deste ano, o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que a crise atual exigia “mudanças fundamentais e sistémicas”.
Uma abordagem baseada nos princípios dos direitos humanos é indispensável para realizar essa mudança. No Brasil, o escandaloso aumento da insegurança alimentar durante a presidência de Bolsonaro foi a consequência de políticas que negligenciaram as pessoas marginalizadas e violaram os seus direitos. Como resultado, o CONSEA, recentemente restabelecido, está a defender políticas que combatem a fome e abordam as suas causas profundas, tais como o racismo estrutural e as desigualdades de género. Não podemos continuar a apoiar sistemas alimentares insustentáveis que concentram o poder e a riqueza nas mãos de meia dúzia de privilegiados.
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As Diretrizes das Nações Unidas sobre o Direito à Alimentação, adotadas pela FAO em 2004, descrevem como abordar as causas estruturais da discriminação e da desigualdade nos sistemas alimentares. Estas orientações foram pioneiras na implementação dos direitos humanos económicos, sociais e culturais e inspiraram inúmeras políticas nacionais e reformas jurídicas. Também desencadearam o desenvolvimento de um conjunto completo de normas e políticas baseadas em direitos humanos adotadas pelo Comité de Segurança Alimentar Mundial (CFS, sigla em inglês) da ONU, pela Assembleia Geral da ONU e por outras agências da ONU, inclusive para mulheres, camponeses, povos indígenas, pescadores e outros grupos.
No Brasil, os esforços nacionais e internacionais traduziram esses princípios num pacote de políticas e programas nacionais destinados a vencer a discriminação racial e de género, garantindo rendimentos decentes e proteção social, e garantindo os direitos à terra e à água de mulheres, camponeses, povos indígenas, pastores e pescadores. Esses esforços também resultaram em iniciativas de agroecologia e soberania alimentar que envolvem ativamente grupos da sociedade civil e cidadãos comuns, bem como programas de refeições escolares provenientes de agricultura familiar.
Mas o Brasil está longe de ser um caso isolado: outros governos estão a adotar reformas semelhantes. Conselhos locais, regionais e nacionais de política alimentar estão a ser criados em todo o mundo e alianças parlamentares estão a trabalhar para aprovar legislação sobre o direito à alimentação em muitos países.
A intensificação destes esforços exigirá uma coordenação política significativamente maior entre todos os níveis de governo. O Conselho de Direitos Humanos da ONU e o CFS salientaram a necessidade de uma resposta coordenada à atual crise alimentar. Mas, ao mesmo tempo, a sociedade civil, povos indígenas e académicos alertaram contra o aprisionamento da governação alimentar por parte das empresas e apelaram por um quadro de responsabilização empresarial a nível das Nações Unidas.
Existe uma dinâmica crescente de mudança antes do 75.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que será comemorado em dezembro. E o direito a uma alimentação e nutrição adequadas, em particular, poderá estar no topo da agenda. No final de junho, o governo alemão irá acolher a conferência “Políticas contra a Fome”; a edição deste ano centrar-se-á em abordagens baseadas nos direitos para a transformação dos sistemas alimentares. Com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos a propor uma economia dos direitos humanos e com o Brasil a preparar-se para assumir a presidência rotativa do G20 em 2024, poderemos assistir a propostas ambiciosas para fazer avançar o direito à alimentação a nível internacional.
A profunda desigualdade, a discriminação estrutural e a violência sistémica dos sistemas alimentares persistem há demasiado tempo e os cidadãos comuns de todo o mundo exigem mudanças. Uma transformação a esta escala exige uma estreita colaboração entre a mistura diversificada de pessoas que se estão a envolver em formas criativas de resistência, bem como governos progressistas que estejam dispostos a ouvi-las e a representar os seus interesses. O respeito pelos direitos humanos tem de constituir a base de qualquer esforço para reduzir a fome aguda. É a única maneira de criar um sistema sustentável e equitativo que forneça uma alimentação adequada para todos.